quinta-feira, 17 de outubro de 2013

[Por quem te tomas quando me afrontas?]


Ninguém é mau. O que somos é ainda novos demais na terra.
Agustina Bessa-Luís

«-Por quem te tomas quando me afrontas?
Excessivamente convicto parece quereres levar-me da terra.
Não te admito que desfaças a minha ingenuidade com duas
ameaças de mar picado. Retira-te das minhas ilusões fortes
como se fosses daquele país do sul propiciamente indeferido»

«- Sou novo demais para te desobedecer porém o que tocas
com as tuas mãos desencontra-se com o tanto que me  dizes.
Não posso mesmo que queira seguir esse rumo descabido.
Ficarei porque este amor me chora pelo corpo afora e morro»

«- Cala-o se não és mau. Lembra-te que alguém te ama tanto
ou mais do que eu. Por que queres desembarcar aqui nesta
praia tão salgada em que nenhum dos teus aporta? Neste fim estreito?
Nem há assento para dois nestes caminhos de areia. Só para mim
só para as outras que também sou quando adormeço em sonho longo.»

«- Recusas o que também é meu. Quero esquecer a quem pertenço.
Prefiro pensar que erro porque não consigo entender o que a idade
me esconde atrás de todos os horizontes todas as paisagens belas.»

«- Vamos morrer primeiro e só depois partimos juntos já um pouco
mais sábios  já um pouco menos aterrados com as dores que esta ilha
nos faz sentir quando respiramos fundo. Vamos morrer primeiro e
com outros rostos renasceremos cheios da pureza dos areais molhados
tão remexidos por aquele grandioso mar que faz esquecer todos os prantos»


Imagem: Ben Hoper

[É isso mesmo senhor leitor]


«-É isso mesmo    senhor leitor
o prazer de ler o que nunca foi escrito
não é um prazer qualquer  Não não é
Concordo consigo ... completamente ...
Mas agora leia-me bem  Renda-se ao texto
e pelo menos uma vez tente deixar-se subjugar
Cative-se... isso...olhe mais para baixo por favor
Não se precipite  Não se entregue de uma vez só
Viu o nome da autora? Claro...já percebeu quem ela é
Pode então agora sobrevoar o texto como se andasse
seriamente em busca de si próprio Como? Onde estão
as entradas irreversíveis para estes versos? Como assim?
Obviamente que deve seguir-me no sentido esquerda-direita
E não...não tente entrar noutro poema sem primeiramente
ler este com uma voracidade ininterrupta Eu estou aqui mais do que
noutro lugar Sente-se ansioso excitado desorientado?  Não se precipite
por amor de deus  pelo amor que lhe tem ...a ela... ou pelo menos julga ter
Veja o espaço livre da margem direita  Sim...ora bem...esse mesmo...pare
Pouse mesmo aí o olhar Pode avistar-me e acalmar essa ansiedade indomada
Não queira encontrar nessa urdidura poética os olhos  a boca dela ...Não nos confunda
Pode realmente encontrá-los mas fora do texto  Peço-lhe: não me conceda esta autoria
O quê? Só consegue relaxar se der com as marcas do meu corpo?! Olhe que sou apenas
o sujeito poético desejado por ela ...uma sujeita sim...mas não deixo de ser abstracta
O meu corpo é muitas palavras juntas  cheio de sílabas excitadas por conhecê-lo
Sim...admito...assim...aqui nesta linha recta horizontal negra e intermitente Parece-me
que já estou a vê-lo a chegar os lábios à minha fronte Sim    f-r-o-n-t-e   minha fronte
Pode beijar-me aqui mesmo neste advérbio pequeno  a-q-u-i  sou eu  beije-me leia-me
Nunca pensou poder fazer isto do poema? Quantas vezes me beijou desde que lho
permiti senhor leitor? Não o faça...pare por favor Tenha a humildade de o fazer de novo
apenas amanhã quando me procurar outra vez para me reler e tiver a certeza de que
não sou L.V.  Não não sou Já lho tinha dito no verso nove tratando-a na terceira pessoa
E eu não quero compromisso sério dentro do texto Sim levianamente assumo que
quero ser lida por outros leitores percebe? Superficiais  Atentos  Profundos  Precipitados
Quero que percebam à sua maneira quem sou afinal  como domino a minha artificialidade
Espere...Estou sim? Ainda me vê na folha que tem consigo aí ao telefone? Ainda me lê?
Eu sinto-o sim...continuo morta de prazer mas por agora dobre-me...meta-me no bolso
Não desespere...guarde-me bem...saia pelo canto direito em branco...volte amanhã ...»

Imagem: Antonio Lopez, El Telefono

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

[Da tua voz fiz uma vertigem]

«- Da tua voz fiz uma vertigem
  como nunca imaginei haver.
  Dobei-a como a uma lã
  que parecia mesmo não querer
  desprender-se do novelo de que é enigma.
  Assustou-me uma garganta fechada
  sem abertura para o escuro que há em ti.
  Doeu-me puxar-te pelo fio do coração
  que reconheço de qualquer longe. Foi longo
  o caminho que estendi até aos teus rumores.
  Pé ante pé equilibrei-me nas tuas entoações.
  E só no fim do meu esforço   lenta   me despi
  e a tua voz veio à tona  súbita  num redemoinho
  mas com um sangue tão retraído
  que me transtornei para essa noite para a noite
  seguinte para todas as noites. Perdi-me então
  num silêncio de mera constatação da tua perda
  que não passou de outra vertigem que refiz de ti
  para lá da música que noutro tempo ousaste ser
  no meu corpo tão novo tão tenso contra o teu.»
«- ___________________________________.»
«- Hoje és o silêncio triste que há no fundo
   das coisas  às vezes no avesso interdito dos lugares
   ou nas sombras que passam e se calam sem razões.»

Imagem: Rocco Carnevale, L' Escape