sábado, 27 de abril de 2013

[ Recordo: a minha alma cresce]


Recordo:  a minha alma cresce
quando estou dentro do texto
Fica enorme ali    sozinha entoa

Recordo ainda:
quando de mãos dadas
atravesso contigo a cidade
e aos poucos   um alarme
pois nessa noite  tudo é maior
      e essa mesma cidade se agiganta.



Imagem: Harry Wakefield, Dark Mystery

segunda-feira, 22 de abril de 2013

[Quero viver para sempre]

                                                                                                 
                                                                                                     Le dur désir de durer
                                                                                                     Paul Éluard

Quero viver para sempre
nem que para isso tenha de morrer
Sim   quero viver para sempre
mesmo na minha morte ser
porventura    a palavra   Fim 
e arranjar  a melhor maneira
de ser dita  nesse som nasal e breve
numa arrastada eternidade
Quero atravessar por aí a fronteira
reanimar-me mal me digas alto
e aí porei o pé na prosódia mais curvada
subirei aos teus lábios sem medo do vazio
pois sei que daí serei lançada
num som convicto da minha vida
Sim   saltarei de escuridão em escuridão
até abrir a minha claridade em todo o poema
em todo esse trajecto aéreo     maravilhada
até cair na terra   e sujar os pés     deliciada
deixando entrar no rosto cheiros distantes
de olhos fechados (mesmo sem rosto
mesmo sem esses olhos    comidos pelos bichos)
sentir o odor das flores mais belas
(mesmo a meio desse horror da decomposição)
sentir o odor do mar tão grande
sentir o odor das fragas tão sós
(e apetece cantar com estes cheiros tão anafóricos)
sei: inspirarei momentânea toda essa simplicidade
para durar como uma folha antiga    perdida
gozando de ser coisa táctil
coisa audível    sempre presente
na voz de quem me disser.

domingo, 21 de abril de 2013

[Vem numa espécie de angústia aos lábios]


A poesia é criar uma espécie de angústia para a resolver.
                                                  Paul Valéry

Vem numa espécie de angústia  aos lábios
a minha poesia      
Sabe-me a palavra dorida   que eu própria feri
para depois abrir os braços o mais que posso
e ir de encontro a essa opressão
que sustento    que recrio   que me instalo
Rasgo dois furos   um em cada mão aberta
e transporto a angústia para a minha cruz
alço-a no peito aberto a tudo
dou-lhe o corpo inteiro para que ela fique
se enraíze como planta carnívora
Gosto que me roa   que me coma até que doa
De vez em quando molho os lábios para trazer
a dor para dentro   mas devagar
Reconheço a minha poesia a doer por mim acima
cá dentro arde    sem voz ainda que a diga
ajudo a recolhê-la ensanguentada
a enovelar-se irreconhecível num novo caos
e precipito o seu transporte nas veias
cada vez mais quente    a borbulhar   e dói
porque cá dentro não há vento que a rebente
contra um fundo real    duro
O real é sempre mais duro do que o meu corpo
o meu corpo é mole    embala-a   liquidifica-a
Mas dentro do meu corpo    mais ao fundo
há sonhos constantes que se cruzam com ela
com a minha poesia em sangue
e como se fossem pedras  esses sonhos
atingem-lhe o muro de angústia com força
acabando por desfazê-la nesse alvo
numa ou noutra palavra
que expulso quando já não suporto mais
refazê-la assim no sangue
como se não existisse fora de mim.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

[No quarto tenho coisas que por vezes voam]

Tudo se confunde já. Coisas e quimeras.
Samuel Beckett, Mal visto, mal dito


No quarto  tenho coisas que por vezes voam
não apenas quando fecho os olhos       N  ã  o
A frieza da caixa de jóias a disparar-se em ouros
capta minha atenção    e lá dentro    olhos de todas 
as cores     histórias que li   tudo pisca palavras acesas
num único lume      E eu quero ser séria     e não posso
Recolho essas sombras     essas mesmas sombras lidas
que ansiava ter nas mãos    dou-lhes tempo para se tornarem
fechadas   duras   tensas antes de as sublimar num voo
Antes de tudo deito-as sobre o candeeiro de pano branco
e nelas crio outras sombras mais esguias mais achatadas
(Beckett, não quero morrer ajoelhada nesse escuro
que as sombras têm por hábito estender no chão)
(Nem sou como a Velha que quer morrer   que se afasta
da fala para parecer que está definitivamenter morta)       
Agito então essas outras coisas que tirei de mim
Agora quadradas  fervem por se lançar no infinito
e uma luz   dentro de mim   avisa-me para um ouvido branco
de pano   que parece o candeeiro da mesinha de cabeceira
Um ouvido grande que começa a consubstanciar-se no ar
por cima da minha cabeça e fica à espera    suspenso
à espera que minha voz o penetre e fique lá para sempre
iluminada  visível   E eu cumpro   abro os olhos e vejo:
tudo voa e não há sossego no quarto que também roda
à volta da cabeceira da cama a confundir-me com  quimeras
que me forçam a abrir a boca  a lançar a língua como um jacto
de sangue sobre os livros  as telas  que estão nas prateleiras
nas paredes como deuses transformados nessas coisas supremas
para enfeitarem a minha solidão   solidão boa frente à janela
Arredo as cortinas como a tua Velha mas pergunto
O mundo que me quer? Mando estas coisas que me acontecem
dizer-lhe que estou ocupada e dentro do ouvido grande
que fico muito tempo lá dentro    frente aos tapetes longos
onde estão as folhas escritas por minha mão direita   sonâmbula
irrepreensível nos sonhos que ajeita no papel
mesmo naqueles mal vistos mal ditos
E só sossego, Beckett, quando tudo se confunde já. 
Coisas e quimeras.

sábado, 6 de abril de 2013

[Um novo deus é uma só palavra que se esconde]

Um novo deus é uma só palavra
Fernando Pessoa
 
 
Um novo deus é uma só palavra que se esconde
em muitos sítios de minha casa   no mundo em frente
e sei que é por pouco que ela  divina  não me chama
quando a ouço a desfazer-se já no ar 
Espero sempre por esse pouco    por essa voz clara
e    para mim    essa palavra pode resolver tudo
seja verbo nome adjetivo
preposição advérbio ou conjunção
pode mesmo resolver tudo um novo deus
o medo a fome a tristeza o amor
o frio a doença a morte
Sabendo que um novo deus é mais do que uma palavra
era capaz de partir tudo cá em casa 
de insultar  de bater portas 
e até de me matar
Esfolo-me diariamente para que um novo deus se diga se escreva
para poder atirá-lo sobre mim    contra o meu rosto   meu coração
Tudo faço por essa palavra misteriosa que quero trazer na boca
como uma devoção
como uma revolução
feita através da língua que eu tanto amo
E desconfio  qualquer palavra poderá ser um novo deus para mim.