sábado, 30 de março de 2013

Memento

 
                                                                                    Beatus Omnes...
                                                                                 Livro dos Salmos
                                                                                                
Sobre um ramo florido e odorífero
de uma árvore brilhante               discreta
Joaquina gerou Adelaide, Adelaide gerou
Aricina e seus irmãos,
Luís gerou Pedro Isaque Sara e Jonas
António gerou Anita
Aricina gerou Paula Vítor e Patca

Refrão (com a ajuda dos pássaros residentes):
Paula gerou Hugo e Ana
Vítor gerou Dane Maria Mafalda e Isaque
Patca gerou Tiago e Afonso.

Num ramo contíguo e frutificado
desse mesmo bosque à beira-mar
Rosa do Vento gerou Leopoldina,
Leopoldina gerou Jaime e seus irmãos
Adriana gerou Carlos e Jorge
Laura gerou Maria João Cila e Lala
Carlos gerou José
Jaime gerou Paula Vítor e Patca

Refrão (afastando a folhagem antiga):
Paula gerou Hugo e Ana
Vítor gerou Dane Maria Mafalda e Isaque
Patca gerou Tiago e Afonso.


Imagem: A Árvore de Jessé, iIuminura do Saltério de Ingeburge da Dinamarca, c. 1210

segunda-feira, 25 de março de 2013

[ Pessoas ]


I - HÁ PESSOAS PARA QUEM O PRAZER OFENDE


Há pessoas para quem o prazer ofende
para quem a poesia é um susto
e o corpo tremenda morte.
O poema é um buraco uma lomba
a abarrotar de sentidos de equívocos
de acepções como portas giratórias
que pode subjugá-las à tontura
no meio da rua                ou no meio da cama
e a nudez um assalto à mão armada
uma gruta interdita com paus à entrada.
Há pessoas que têm medo de escutar
pousando o ouvido no ventre         nos versos
e por isso afastam ardores que não entendem
Há pessoas de quem não gosto.


II - É PRECISO TER CUIDADO COM AS PESSOAS


E é preciso ter cuidado com as pessoas
que negam desintegrar-se
que recusam poetizar-se
até que façam análises ao sangue ao siso
e procurem uma cura urgente para
esse nato aplicar-se ao desprazer
esse oferecer-se à censura do possuído
numa moralidade cancerígena
altamente contagiante      altamente previsível
Pessoas para quem o corpo pode ser mote
mas nunca glosa em tempestade ou desvario
Há quem desconfie das pessoas que gostam
de dizer alto palavras esvaziadas de razão
sem saber que lá se encontra a própria cura.


III - HÁ PESSOAS QUE TEIMAM


Há pessoas que teimam
em fechar os olhos à tortura
de não saber o sabor
de retumbantes ausências
de promissoras inconsciências
e denegam o facto do corpo se estender
como um tapete volante para escapar
para se dobrar como uma letra intocável
Não querem ver o corpo encapelar-se
e ser onda             ser poema
dito em voz maravilhada até rebentar
a cabeça  delirante           soltar gemidos
estilhaçar seus membros
em vidros de uma lucidez cortante.


IV - AVISAREI AVIDAMENTE ESSAS PESSOAS


Avisarei avidamente essas pessoas que
o Poema é imagem    
consecutiva              regressiva
constante equidistante             inalcançável
Avisarei que quem tem sentido de posse
exacerbado jamais o poderá guardar em todas
as linhas em todos os pontos e movimentos.
o Poema não cabe nas mãos da avareza
será impossível levá-lo com justiça
ou lealdade para casa
impossível fechá-lo em montras      gavetas
Vou a correr avisar essas pessoas
que a poesia instintivamente voa
e que o corpo se vem                   se ausenta
nessa mesma espiral de matéria
que dessas viagens estranhas ambos
regressam como se fossem outros.
Direi às pessoas que quem os quer
reencontrar num ínfimo repouso
deve invadi-los em premeditada loucura
pois só assim os rastos dos gritos são lagos
onde se pasmam belezas verdades segredos
monstruosidades revelações galanteios memórias
Avisarei já esgotada que só assim a poesia se instala
como um espasmo garantido
primeiro dentro das pálpebras
depois do corpo todo
E que só dessa forma corporizada é música
presa difícil  sombreada  enigmática
tornada vago clarão de gozo em qualquer boca.


Imagem: Michał Łukasiewicz

sábado, 23 de março de 2013

[ Se eu quisesse enlouquecia no meio de mim ]


Se eu quisesse enlouquecia
Herberto Hélder


Se eu quisesse enlouquecia no meio de mim
partiria cedo para esse lugar alto
mal ouvisse os gestos dos outros
no centro da sala a dar entrada às horas
com vénias e muitos fumos
a instalar como um tesouro o tiquetaque
nos armários tapetes e afazeres constantes.
Cedo partiria sem ninguém dar conta
e sei - se eu quisesse enlouquecia no meio de mim.
Bastava ver a apontar para fora das coisas
que fazem da minha vida um sorvedouro
e numa incisão cruel à flor do peito
 penetraria até à costela mais alta sem que
ninguém me visse. Aí mesmo deitada no osso
anularia qualquer adorno e instruída por mim
veria apenas:
praia deserta ou impreterível montanha
sorriso ou choro.
E daí diria crente o contrário das coisas.
Elas seriam as mesmas com esse outro som.
Depois rir-me-ia de tudo o resto
gargalhava
sempre com outras ou as mesmas palavras.


Imagem: Michał Łukasiewicz

sexta-feira, 15 de março de 2013

Cabeça de uma Jovem


Os olhos seguem independentes
do corpo e a paisagem recebe-os
estática num alarmante cheiro a terra
molhada que parece emitir um vago
amor ao incompreensível e penetrante
desejo de ser esse longe vacilante.
Os cabelos longos dirigem-se
à distância
atiram-se nessa voraz direcção
e finalmente desprendem-se da cabeça
ligeiramente levantada
ofegante por intervalos de sol.
A boca é mordida ferozmente
pelos seus dentes lisos
e retrai-se para junto da própria
língua que a beija e devora para
um instante eterno.
O nariz suga os vapores
do último húmus e decompõe-no
em tons de verde adocicado.
Anularam-se os restantes traços
os restantes ossos
e os sulcos dessa pele tenra
já não existem junto de tanta solidão.
Nenhum espelho reflecte a sua imagem
Nenhum poema pode escrever
a cabeça de uma jovem
que se perde no prazer
de tudo o que vê e não possui.


Imagem: Diego Velázquez, Cabeça de uma Jovem

sábado, 9 de março de 2013

Poema que se lê de baixo para cima


e serei terrena e escrita por mais uns tempos.
descerei discreta às ruas da cidade
só quando estiver bem pesada e saciada
Vou subir mais e mais e
e pretendo guardar as melhores nos bolsos
para os céus temendo perdê-las na terra
palavras de poetas mortos que as lançaram
suspensas e aladas como cavalos doutro tempo
passar por outras palavras aterradoras
Hoje quero escrever para cima
quando não mostra a sua plumagem.
também engrandece o seu canto
um pássaro escondido
como poeta obscura e alienada -
Quero escrever para cima
do cimo dessa árvore alta imaginada).
com toda a força a quem passa
(palavra lançada como pedra
ou uma palavrada
com um assobio agudo
quando eles passassem
surpreendesse os amigos
entre as suas ramadas
e me escondesse
uma árvore
como se estivesse a subir
para cima
Hoje quero escrever

Foi a dormir que vivi o pior


Foi a dormir que vivi o pior
e me descobri em tantas hipóteses de morte 
que apenas pude salvar-me numa espécie de grito
que inventei contra o meu estrangulamento 
Grito que levantei contra a noite-dentro
para me desviar desse sono  insuportável
E ao recusá-lo tornou-se claro que me infligi
como se fosse outras que nunca vi de dia
uma bílis mais amarga  mais verde
Verti-a perigosamente sobre a razão
como uma perturbação saturniana
- sobre os meus medos de mulher viva e amante
que deixam o meu corpo poético para trás -
Dobrei-me ao entendimento do que é ser mortal
e não acordei entre nenhuma noite nenhuma madrugada
Apenas me deixei implodir de veias malignas 
e a partir das quatro da manhã em ponto
(sou rigorosa mesmo adormecida)
o sangue alastrou-se em caminhos tortuosos 
e doenças pantanosas soterraram a única
cura que para mim preparei há muito
a palavra
por isso me forço a não dormir e de imediato 
digo ou escrevo para me salvar da noite.


Imagem: Leonor Fini