quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Narcolepsia

Digo praia quando as coisas são belas
Indomáveis avassaladoramente cruas
posso chamar praia à tua voz
ao teu cabelo branco e negro
como uma antítese
ao livro que prendo nas mãos
mal abro os olhos com a primeira luz
a um dia de chuva ao teu corpo
em cima do meu por baixo do meu
não interessa onde digo praia cheia
de vogais que me abrem demais a boca
para esse grito tão livre
e mesmo assim sigo o real dos meus pés
dentro das botas de cabedal de cano alto
número 37 assentes no chão a comprovar
a vida que passa quase sem se ouvir numa espécie
de rumor de água (perco todos os guarda-chuvas
que me protegem dos aguaceiros das ruas
de verdade) Digo água e devia estremecer de frio
ou de sede mas chega é um desejo de vinho quase
negro a tingir-me os lábios de amarguras
que aspiram à tua doçura muda e vaga
e quando digo – sou – caio copulativa sobre
essa curva e contracurva verbal
como numa névoa que me intercala
me desfaz o imediato o em frente ao nariz
e me leva para longe da paisagem que me ronda
- quem me puxa para debaixo do sol de todos?
Digo céu e vejo anjos a caminhar na terra
e crianças como a que ainda sou
(de carne e osso) a voar no céu
céu pode ser o inacreditável como o nosso fulgor
quando estamos juntos céu é o teu abraço
juro que vejo tudo isto ccom as palavras do poema
mas mesmo assim devido à tua desconfiança
- será minha também?
coloco uma mão depressa sobre os lábios o rosto
(para sentir que existo mesmo por fora)
e tentando vir à tona do real chamo - é ou parece-me?
atiro isto para ver se acordo ou tu me chamas para esse
manto das verdades das racionalidades
e ao interrogar o sonho posso quem sabe embater no real
como num rochedo sem me ferir em demasia
posso chamar rochedo a tudo o que não gosto ao irreparável
a tudo o que é rugoso
ao medo ao teu adeus à distância da minha cama à tua
e aí no alto digo noite para qualquer luz me vir agarrar a mão
digo uma coisa para acontecer outra e acontece.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Trago a minha avó morta na língua

À minha irmã Ana
Trago a minha avó morta na língua
- Não tive ainda coragem para a engolir
talvez por aquela última imagem
em plena praia deserta ou seria um cemitério?
em que a invadiu uma luz primordial
que lhe acendeu a testa de uma cor falsa
temerosa como o fim da tarde mais belo
Essa mesma luz falsa cobriu-lhe  os cabelos raros

da cor da morte longa e indiferente
amarela cor amarela excessivamente amarela
e quase cega dessa abundância disfarçada de nada
deixei-me impressionar pelos seus lábios murchos
pintados que adiavam a ausência sequencial
daquele rosto vazio
foi minha irmã quem os pintou com
o seu batom novo e vivo

- a avó sempre gostou da maquilhagem
mesmo depois de morta absorveu a cor
com a mesma pressa e vaidade dos vivos
Vi-a nitidamente morta e ela era a síntese de
uma colina florida
flores de odores fortes cobriam-lhe os pés
recolhidos como raízes numa floreira
e ela parecia uma encurvada flor a crescer velha

a crescer vorazmente em direção ao não ser
ficou muito alta mesmo muito alta por quase
já não existir
O vestido azul que lhe vestiram também era
florido e bonito demais para aquele
momento sombrio de destituição
brilhava excessivamente dentro do caixão
e era como se a visse ir deitada a uma festa
mas nem ali naquela fresta nem na minha língua
ensopada de saliva como estava, a avó poderia
levantar a cabeça e dançar ondulando o seu corpo

Para além de tudo isto ouvi chorar chorar chorar
e entendi a consistência da reza a partir do choro

Agora afasto essas visões mudas da cabeça
para cobrir a morte com palavras
e a avó mexe-se um pouco curva-se para o meu céu
da boca - eu sinto-a impertinente pois
leio-lhe a voz mesmo depois de morta -
a voz dos meus mortos nunca se apaga
fica apenas mais achatada e desfaz-se líquida
nos meus ouvidos para que mais ninguém a ouça

E assim correspondo ao seu pedido perdido
prenso-a um pouco a medo
contra os meus dentes que ajudam a exilar gravemente
aquela fenda em que ela se tornou
dentro da minha boca - antegrito de qualquer fim -
e porque a morte também é palavra
profiro-a neste poema para que a possa erguer alta e
interminavelmente grandiosa lhe devolver a vida.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Às mãos


Mãos que não dispenso da memória
que como bichos aguardam a chamada
a minha voz antiga a procurá-las
Por vezes meto a cabeça nostálgica
entre as mãos para rever essas tantas
aproximações sinais que nunca esqueço
marcos que me esperam sempre
e me engrandecem como
ecos de Sophia - mãos interrompidas
Mãos que colheram para sempre
intensos momentos de amor momentos
de escrita desse amor partido em muitos
e lembro imensamente
as minhas mãos cheias de orquídeas
brancas como dedos a chamar esse outro corpo
para junto do meu corpo a um canto retraído
Lembro tantas imagens
eu a cantar eu a clamar os leopardos
de Herberto Helder para me lamberem
as mãos giratórias
A tua língua as tuas mãos violentas velozes
como se as visse num poema maior
a entrarem nas minhas a lutarem possuídas
a avançarem contra os ombros os seios as ancas
em calculadas e sucessivas despedidas
Lembro-as a alastrarem um fogo voraz como
um texto incalculável que não se apaga entre
os cabelos que segurava como chamas
Mãos crucificadas as minhas
quando tu as seguravas abertas a brilharem dois
sóis por dentro da cama por baixo dos lençóis brancos
e eu a dizer mesmo calada que as minhas mãos
não faziam sentido sem o teu rosto a tua pele
a sombreá-las
E as tuas mãos já foram mãos demais para
uma vida
Trémulas fizeram-me nascer gritando a partir delas
Sólidas ainda hoje me desviam entre gestos fortes
das trevas das trivialidades que crescem nos meus
dias como ervas
Enfim ergues num fôlego com tuas mãos
as minhas mãos para que eu siga a minha prova


Fotografia: Peter Lindbergh

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Desfigurações


Quando leio até tarde perco-me sempre
a partir de determinado instante. É um segundo
visível, como se de matéria se fizesse pois sinto-o
tocar-me no ombro.Sim, nunca o confessei a ninguém,
seria desentendida, obviamente, pois o tempo nunca
é coisa a ver. O certo é que a partir do instante não vejo
mais texto. E tudo o que está fora do livro, da cama,
se apaga ou alterna. Apercebo-me apenas de que seguro
o livro nas mãos sobre o púbis encoberto, ao mesmo tempo
que se levantam sobre mim, sobre minha cama, notáveis
desfigurações. As letras do livro ficam outras, umas vezes
ameaças, outras, canções.

Leio sílaba a sílaba outras histórias vindas do meu estômago,
histórias que se cruzam e desaparecem empurrando novas letras,
globulosas perdições das minhas noites. E é apenas quando
o instante me toca neste ombro como esfaimado pedinte que em mim
tudo cega para o que existe em volta e vejo apenas a aura doida
daquilo que amo em desestabilizações opacas como se o real se
desmontasse noutros e não fosse eu que os visse
descrente e desacreditada.


Imagem: João Silva

sábado, 2 de fevereiro de 2013

[ Ponho-me nua ]


Ponho-me nua
sempre que inscrevo o poema
na cama da página fria
que me espera quente e proa.


Imagem: Egon Schiele, Reclining semi nude with red hat

Antipecado

Necessito de cometer o antipecado
para o regresso até gostar de mim
mas ao pensar nessa imposição moral
meticulosa e premeditadamente peco
pela anti-naturalidade desse projecto
ainda fechado em mim
Vou ao encontro desse completo antipecado
E mesmo assim determinada
sei que suspendo o seu prefixo
devido ao peso da consciência
desta argúcia inocente com o fito na pureza
Então na esquina, de perfil, reaparece a culpa
e a certeza de que só a morte, só tu
me lavarão a pele do corpo cúmplice e imundo
e finalmente o teu abraço apertado
compreensivo antes da desfeita de me
entregares à terra em pulsos algemados

Poema recém-pós-moderno

Foda-se
quero ser pós-moderno
abram portas
aqui vai bomba
quero entrar
mesmo sem me baptizar
sem quaisquer cerimónias
puta que pariu os eventos
Ainda que me custe
devo sangrar do cu
(e eu estou de costas para o leitor)
devo multiplicar palavrões
Nada de merda ou bolas
Caralho, sim, caralho me valha

Pena é não ser assim minha forma
minha tinta é outra, confesso-a delicada
Mas deixarei crescer as unhas por baixo
das unhas postiças que comprei no hipermercado
e mal possa cravar as minhas próprias garras
neste tempo lírico do ordinário
passarei, caralho, a ser outro
arranharei a valer foda-se
Deixai-me passar que aí vou eu.

[ Vejo mulheres com armas ]


Vejo mulheres com armas
debaixo do oceano fundo
mulheres que disparam bolhas de ar
contra os homens maiores do que elas
bolhas de alívio impregnado de gritos
inaudíveis na praia onde despiram discretas
as suas roupas gastas de tons de areia
disparam contra esses homens invisíveis
maiores do que qualquer montanha
maiores do que o próprio oceano
maiores do que o medo delas
homens como galgos como lobos
que farejam o que elas trazem nos bolsos
e também o desejo que guardam por dentro
dos olhos – abertos ou fechados
homens que mordem silenciosos os pés
dessas mulheres que querem ser mulheres
deixando-lhes feridas duras de calar
homens que as impedem de abrir os braços
temendo uma força intensa vinda desse arco
que as transforme noutras mulheres
mulheres ventosas mulheres com cio
com palavras e gestos abertos
como gaivotas que se atiram ao mar
sempre que o querem beber desvairadas.


Imagem: Matt. R. Martin, Procession

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

[ Sinto-me observada ]


Sinto-me observada
a cada sílaba cantada
la-la-rai-la-la-rai-la
disfarço ao lado das coisas
sigo em frente e canto
persisto la-la-rai-la-la-rai-la
mas vejo para trás
sombras delgadas fugazes
vertidas no soalho polido
um corpo branco
muito branco estendido
deitado ao chão como luva de luz
sombras de um corpo desejado
que espera pelo (meu) olhar -
serei eu que me espero
para me abraçar?
Ou serão agravos da alma
a empurrar-me
para uma visão marmórea
da morte a que não escapo?
sei. não canto já. sombras de mim
são o futuro da minha carne
medrosa à espera que eu passe
por toda a parte
branca


Imagem: Francesco Hayez, Susanna al bagno

[ Vi o sol subir as tuas costas ]


Vi o sol subir as tuas costas
sem que tu visses
o clarão em que se tornou
a tua arquitectura espinal

vi-te catedral
e desde essa aparição
fiquei devota


Imagem: Francis Bacon, Study from the Human Body

[ É tarde para quase tudo ]

É tarde para quase tudo
É tarde para quase tudo
É tarde para quase tudo
...tarde para quase tudo
............para quase tudo
....................quase tudo
..............................tudo
.....................................

                            verso repetido quase-ininterruptamente
                            até rebentamento venal de outras vozes

mas o tempo aqui é outro
outro outro outro outro
que tempo é? que tempo é? que tempo é?
curva-se uma outra voz
voz voz voz voz voz voz voz voz voz voz
e volta a erguer-se para obter resposta
resposta resposta resposta resposta resposta
é feito de palavras
palavras palavras palavras palavras palavras
de fundo
fundo fundo fundo fundo fundo fundo fundo
e cá nunca é tarde e tudo ecoa
ecoa ecoa ecoa ecoa ecoa ecoa ecoa ecoa ecoa