Ao domingo tenho tido algumas crises de identidade
e durante as tardes de chuva perco o rumo de quem sou
sem que ninguém dê conta
e já não é a primeira vez que assumo nos poemas
que escrevo o nome de escritoras de incontornável valor
como hoje que assinei marguerite duras e me despedi
no último verso com um p.s. e uma frase em francês
que prolongava a despedida do meu amante chinês
tudo isto cheia de umas saudades esquisitas
que me pareciam mesmo verdadeiras e até me chegaram
à boca cheias de sons dentais e de estalidos que desconhecia
Quando acabei de escrever fiquei ainda mais angustiada
e senti-me uma poeta de destino incerto como me ensinou
Nuno Júdice numa fórmula de uma luz inexplicável
por isso lembrei-me de versos desse mestre e não consegui
fazer mais do que um avião do papel em que escrevi
o meu poema para poder atirá-lo da janela do meu quarto
para a rua e descer as escadas para o apanhar e meter novos
versos no meio dos que lá estavam até ninguém poder saber
quais eram os primeiros ou os últimos
mas antes de me sintonizar com a vida doméstica que estava
mesmo ao meu lado com os cozinhados à minha espera
admirei-me por não ter subido às nuvens com aquilo
que escrevi e só depois me lembrei que talvez fosse
por não ter lido em voz alta esse poema mudado.
PALAVRAS DE LAURA
terça-feira, 24 de março de 2015
terça-feira, 5 de agosto de 2014
[Vem de mim o mistério da voz]
Vem de mim o mistério da voz
parturiente e parteira convoco-me
este momento é só meu
dou o corpo à morte - mudo
e fervilham-me os lábios logo
assim ofereço a garganta ao corte
os pulsos às amarras aos grilhões
as mãos em punho debatem-se ríspidas
as pernas afastam-se como pássaros tementes
tensa finco os pés na parede grossa
frente à cama quente desta pré-convulsão
E é tanto o incompreensível que o nascimento
da palavra envolve que abro os olhos
para reter do vazio a primeira sílaba
lançada pela língua dolorosa em plena voragem
Ouço e só depois me liberto a tomo e escrevo
como se a música pudesse compor-se saída de mim una.
parturiente e parteira convoco-me
este momento é só meu
dou o corpo à morte - mudo
e fervilham-me os lábios logo
assim ofereço a garganta ao corte
os pulsos às amarras aos grilhões
as mãos em punho debatem-se ríspidas
as pernas afastam-se como pássaros tementes
tensa finco os pés na parede grossa
frente à cama quente desta pré-convulsão
E é tanto o incompreensível que o nascimento
da palavra envolve que abro os olhos
para reter do vazio a primeira sílaba
lançada pela língua dolorosa em plena voragem
Ouço e só depois me liberto a tomo e escrevo
como se a música pudesse compor-se saída de mim una.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
[Procuro instalar-me no interior do meu labor]
Procuro instalar-me no interior do meu labor
sem que alguém mo tenha ensinado
sem exigir qualquer disciplina de mim própria
sem esperar que outros o venham reconhecer
pois na verdade sei que desde que a poesia vem
não posso escapar nem cair para um lado de fora
ela vem e chega-me tantas vezes mais cedo
que é uma impossibilidade achar a alegria
noutro ponto que não seja aquilo que faço
aquilo que sou e vou sendo no interior desta
escrita da palavra em palavra de palavra de palavra.
sem que alguém mo tenha ensinado
sem exigir qualquer disciplina de mim própria
sem esperar que outros o venham reconhecer
pois na verdade sei que desde que a poesia vem
não posso escapar nem cair para um lado de fora
ela vem e chega-me tantas vezes mais cedo
que é uma impossibilidade achar a alegria
noutro ponto que não seja aquilo que faço
aquilo que sou e vou sendo no interior desta
escrita da palavra em palavra de palavra de palavra.
[O meu melhor contributo para a literatura]
O meu melhor contributo para a literatura
seria urinar em cima dos «melhores livros
de sempre» como se fosse uma cadela insaciada
(e pelos vistos hoje a lista parece infindável)
Tentar que o cânone se refizesse a partir de um nada
um nada líquido e amarelado
um nada sobejante e inodoro tortuosamente resistente
e o que nauseabundo restasse se expusesse ao sol
nas mãos de qualquer pretensioso crítico
e o fizesse retroceder e querer respirar ar limpo
fora das milhares de páginas manchadas
da antiga da intocável literatura.
seria urinar em cima dos «melhores livros
de sempre» como se fosse uma cadela insaciada
(e pelos vistos hoje a lista parece infindável)
Tentar que o cânone se refizesse a partir de um nada
um nada líquido e amarelado
um nada sobejante e inodoro tortuosamente resistente
e o que nauseabundo restasse se expusesse ao sol
nas mãos de qualquer pretensioso crítico
e o fizesse retroceder e querer respirar ar limpo
fora das milhares de páginas manchadas
da antiga da intocável literatura.
sexta-feira, 25 de julho de 2014
[Glória à voz - gritei para lá das luzes acesas]
Glória à voz - gritei para lá das luzes acesas
dos candeeiros da minha rua
(poeta alberto miranda nº 16 5ºE)
gritei aí umas dez vezes impetuosamente
e a frase subiu pela noite em direcção ao nada
Glória à voz, senhora poeta - pus a mão na garganta
que seria de mim meu Deus sem estas cordas
que seria de mim sem este eco de mim a parecer outros
que seria com gestos apenas com olhares ignotos
Venha o silêncio rodear as palavras
para dizê-las como se fossem as pancadas
de Molière - no início no fim desta peça de vida:
Voz agora e na hora da minha morte.
quarta-feira, 23 de julho de 2014
[Lamento encher o coração de livros]
Lamento encher o coração de livros
ter batimentos sílabas versículos odes
no peito e na garganta como pequenas dores
o hoje e o amanhã parecem-me sempre longe
pressinto esgotar a força neste exílio de arritmias
por isso em cada pontada extrema chamo um filho
e digo: lança todos os volumes da varanda
mutila a capa as folhas rasga-os devagar
e vem depois pentear os meus cabelos
com a tua voz inclinada contra todas as inspirações
vem depois fechar-me os olhos contra mim
e torna-te todas as palavras de que preciso.
Imagem de: Serge Marshennikov
[Todas as manhãs tiro os seios da blusa]
«Eu sou o centro fixo que anima a dança»
Octavio Paz
Todas as manhãs tiro os seios da blusa
para fazeres deles o que precisas
para que os acaricies dançando
para beberes deles o veneno que te faz
suportar o dia e o princípio da noite
esses que te obrigam a demover jardins
Todas as tardes te lanço os meus braços
como ramos marinhos que crescem
às estrelas e acendo a luz do meu umbigo
para que saibas o caminho que tens de
semear depois do nosso abraço estreito
Todas as noites te prendo com as pernas
pois sei que és barco para fundear
e deixo que entres em mim como num cais
que assiste dorido às tuas frequentes partidas.
Imagem de: Serge Marshennikov
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